Especialistas comentam caso envolvendo Gabriel Garcia Márquez e a publicação de um manuscrito inacabado sem autorização. Direitos morais desconsiderados no mundo literário.
As palavras de Gabriel Garcia Márquez sobre o seu último manuscrito inacabado, ‘Em agosto nos vemos’, foram definitivas: ‘Este livro não presta, tem que ser destruído’. O renomado autor colombiano, vencedor do Nobel de Literatura em 1982, deixou claro seu descontentamento com a obra que nunca chegou a ser publicada.
Apesar da decisão de destruir o manuscrito, o legado literário de Gabriel Garcia Márquez continua vivo através da publicação de suas obras consagradas. Cada lançamento é uma oportunidade para os leitores se encantarem com a narrativa única do autor, perpetuando assim sua importância no cenário literário mundial.
Os desafios da publicação de um manuscrito inacabado
Entretanto, a última manifestação de vontade do autor, falecido aos 96 anos em abril de 2014, não foi respeitada pelos filhos de Gabo, que decidiram publicar a obra em 6/3/24, justamente na data de aniversário do autor. A implicação jurídica do caso chama a atenção: o desrespeito à expressão de última vontade em vida, sem registro formal, pode ser considerada legal?
Ato de traição Na introdução do livro, Rodrigo e Gonzalo García Barcha explicaram a decisão contrária à vontade do pai. Eles admitiram que se tratou de um ‘ato de traição’, mas ressaltaram que a perda das faculdades mentais de Gabo, que o impediu de terminar o manuscrito, também o teria impedido de perceber como a obra estava bem escrita.
Os filhos do autor ainda afirmam que a decisão da publicação decorreu da presença de uma protagonista feminina no livro, já que em todas as outras obras de Gabo, mulheres são coadjuvantes. A personagem, no caso, é Ana Magdalena Bach, uma mulher de 50 anos, casada, que, anualmente viaja, em agosto, a uma ilha caribenha para visitar o túmulo da mãe.
Nesse momento anual, Ana encontra a possibilidade de ‘libertação’, desenvolvendo relacionamentos extraconjugais com desconhecidos. Autores como Virgílio, Franz Kafka e Gabriel Garcia Marquez tiveram manifestação de última vontade contra a publicação de obras inéditas desrespeitada por herdeiros.
As questões legais envolvendo testamento e direitos morais
Testamento A 32ª tabeliã de notas do Rio de Janeiro/RJ e professora de Direito Notarial e Registral , Virgínia Arrais, explica que toda manifestação de vontade feita em vida, para surtir efeitos após a morte, deve ser feita por testamento. A lei de direitos autorais (lei 9.610/98), especifica, em seu art. 28, os direitos patrimoniais do autor – de exploração econômica da obra – e, em seu art.
24, os direitos morais, os quais são inalienáveis e irrenunciáveis. O §1º deste último dispositivo estipula que, após a morte do autor, o direito de ‘conservar a obra inédita’ é um dos que são transmitidos aos sucessores.
Na avaliação de Luiz Fernando Plastino, especialista em Propriedade Intelectual do escritório Barcellos Tucunduva Advogados, deixar uma obra póstuma inédita não é um direito patrimonial. ‘É outro tipo de direito autoral, o qual a lei determina que será exercido pelos sucessores do autor após a sua morte.
Assim, existe divergência sobre a necessidade de os herdeiros realmente respeitarem esse tipo de determinação de última vontade que não implica aproveitamento econômico.’ E se inexistir concordância? Virgínia Arrais reforça que ‘todo testamento ou escritura pública declaratória podem ser contestados, em função do livre acesso ao Poder Judiciário’.
Dessa forma, caso algum dos herdeiros discorde da decisão de publicação, por exemplo, é viável acionar a Justiça para buscar uma solução adequada. Desde antes de Cristo A curiosa situação não é única. Outros autores que expressaram o desejo de proibir a publicação de suas obras antes de morrer tiveram suas vontades desconsideradas. Um exemplo é Virgílio, que em 19 a.C.
deixou instruções claras para que ‘Eneida’ fosse destruída. O poeta considerava que a obra não estava completa e em estado insatisfatório para publicação. No entanto, o imperador romano Augusto, que era um grande admirador de Virgílio, ordenou que o poema fosse publicado, ignorando os desejos do autor. Outro caso notável é o de Franz Kafka.
Antes de morrer de tuberculose, o escritor pediu ao seu amigo Max Brod que destruísse alguns escritos, incluindo os clássicos ‘O Processo’ e ‘O Castelo’, obras consideradas, hoje, de suma importância para o arcabouço literário de juristas.
Os desafios atuais e a preservação da vontade do autor
No Brasil Recentemente, a obra de Graciliano Ramos entrou em domínio público, porém a publicação de alguns escritos do autor gerou desconforto em seu neto, Ricardo Ramos Filho. Em entrevista à Veja, ele afirmou que seu avô deixou determinação por escrito, sempre respeitada pela família, de que não desejava ver obras assinadas com pseudônimo publicadas. ‘Se assinei com meu nome, pode publicar.
Já com pseudônimo, não. Não sobra uma linha, não deixe sair. E, pelo amor de Deus, poesia, nunca. Foi tudo uma desgraça.’, escreveu Graciliano. Ricardo explicou que seu avô se considerava um ‘mau poeta’. No entanto, o poema ‘Os Filhos da Coruja’, escrito sob o pseudônimo J. Calisto, foi uma editora.
Abre-se, então, uma nova dúvida: o direito de manutenção do ineditismo se sobrepõe ao ingresso em domínio público de toda a criação do autor? Luiz Fernando Plastino observa que, nesses casos, ‘se alguém quer garantir que uma obra não seja publicada de jeito nenhum, precisa destruí-la.
É possível dispor dos direitos de edição, reprodução e adaptação de uma obra em testamento, por exemplo, transferindo-os para alguém de confiança, mas temos exemplos em que nem mesmo isso foi suficiente para evitar sua publicação’.
Fonte: © Migalhas
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